ventania


Fecho os olhos e percebo o vento forte contra o meu corpo. Posso sentir alguns grãos de areia beliscando a  pele, enquanto outros se juntam às lágrimas quentes que insistem em cair. Não entendo porque sorrio e choro ao mesmo tempo. É um sorriso estranho, forte: dentes bem apertados e firmes, como se brigassem com o corpo todo pra estarem ali, expostos. E aí sinto como se só eu estivesse parada. Tudo ao meu redor se move à 100 quilômetros por hora, e o vento fica ainda mais forte. Abro os olhos e vejo o que passa ao meu redor: a queda da cadeira de balanço de mãos dadas com amiga, o dia em que enchi a lousa da sala de aula com desenhos coloridos e fiquei de castigo, o primeiro jeans usado para ir ao colégio, o gloss melecado com cheirinho de fruta passando de mão em mão na sala de aula, a primeira vez que vi o mar e o delírio entre as ondas: sensação de não querer sair de lá nunca mais, o meu gravador de fitas k7, o primeiro amor platônico, as primeiras palavras em inglês, a primeira medalha de ouro, o primeiro dia de aula no ginásio, a primeira decepção, o choro na capela do colégio, as rodas de violão e rock n' roll, as conversas sempre animadas no banco da praça, os churros quentes com leite condensado nos dias frios, a farda do colégio encharcada e transparente de chuva, os lábios arrocheados, a tremedeira nas pernas, o coração batendo forte com aquele beijo, as mãos quentinhas, sempre dadas, o namoro na rede, as tardes estudando física, as receitas malucas, o dia em que virei professora, o primeiro salário, o milk shake de maracujá, as fugidas do colégio, a maior alegria do mundo, a pior tristeza do mundo, a desaprovação no vestibular, a esperada aprovação, a mudança de cidade, o primeiro apartamento, a carteira de motorista, as macarronadas entre amigos, os papos à sombra da mangueira, o suicídio de alguém, as dificuldades com o curso, a saudade dos pais, o fim de algumas amizades, o início de muitas outras, o show de titãs gritado até à última nota, ter o rio são francisco na varanda, tomar sopa de abóbora e comer sushi, ouvindo música barata de bar e indo para casa com os olhos borrados, as corridas na orla, as reuniões do teatro, a primeira audiência, a bronca da chefa, o retiro espiritual, as noites regadas à vinho, as confraternizações entre amigas, os amigos secretos... são tantas coisas, que não consigo enxergar todas. Preciso fechar os olhos novamente. A cabeça está cheia de informações. E então o vento para. Olho pro chão úmido e fértil e posso avistar o pôr do sol num horizonte que parece próximo, mas não é. Observo calada aquela pintura de luz e cores e maravilho-me com a beleza fracionada de maneira divina em nossos dias. Deus vai pintando com poesia todos os nossos momentos. E no fim das contas não temos somente memórias. Temos pequenos versos de esperança guardados em algum lugar do passado. - Então vai passar, penso. E sorrio ainda mais apertado.

4 comentários:

  1. Muito lindo, amiga!
    Um relicário descrito com maestria.
    Me fez visualizar cada um desses passos, como meus.
    Bjos, Daniella *-

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  2. Sempre lindos seus escritos aqui no blog..há um tempo eu nao vinha por aqui..bateu saudades de te ler..

    abraços

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  3. Lindo texto. Vieram, por meio deste, tantas destas lembranças que nos mostram uma face mais doce da vida. Então vai passar, penso agora. :)

    Parabéns pelo blog, beijo.

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  4. Ainda sinto..
    Saudades..

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