Não fora pessoa de muitos amigos. Ainda nas fraldas, elegeu à primeira vista sua melhor companhia. Com ela passava as tardes na escola. A escolhida era a única digna de fazer-se próxima ao redor do cesto de brinquedos. Não conversavam. Tinham apenas três anos recém completos, as duas. A amizade se mostrava nos pequenos detalhes. Uma clara prova de que palavras são desnecessárias, posto que dividir a massinha naqueles tempos soava como uma clara confirmação de coleguismo.
O único problema eram as filas. Malditas professoras, que insistiam em arrumar os alunos por tamanho. Resquícios cruéis do positivismo. Nessa dinâmica eu estava sempre condenada ao fim da fila, longe das únicas e mais baixas amigas. Geralmente não tinha alguém que pegasse em meus ombros. Com o perdão do drama, eu era a maior e mais sozinha. A mim foi negado o simples direito de estar entre duas pessoas. Últimos lugares em filas indianas são mesmos cruéis.
A vida ia passando e eu ainda não tinha consciência. Entre desenhos e momentos autistas em casa, ia deixando escorrer os dias. Fazia de tudo brinquedo: um punhado de areia, os santos do oratório, folhas secas, um galho de árvore. Era dona de uma nave espacial no fundo do quintal da minha avó: o pé de seriguela. Cada um sentava num local e juntos - eu e alguns primos - vivíamos aventuras inter estelares sem sairmos do lugar, sem precisarmos de tablets cheios de recursos. Fazíamos de balanço as palhas pendentes dos coqueiros. Inventávamos um mundo ali. Uma luta incrível contra minhocas, formigas e lagartas de fogo.
Parávamos, hora ou outra, para o lanche. Sempre frutas, descascadas carinhosamente pela vó. Eram tempos de bacias repletas de laranjas bem lavadas. O deguste era feito na varanda, vendo o passar do vento. Vez ou outra nos sentávamos à sombra do pé de amêndoas para contar segredos. Tínhamos pé de carambola, laranja, limão, caju, manga espada, seriguela, lima, mamão, seriguela, pimenta, tomate cereja e tamarino: todos ao alcance das mãos sujas de terra.
O vídeo game era esquecido nas tardes de domingo. Entretenimento ficava por conta das nossas brincadeiras (hoje, beirando a obsolescência): polícia e ladrão, pega-pega, esconde-esconde, chicotinho queimado ou "casinha". Engraçado como os passatempos infantis tendem a imitar a vida adulta. Talvez os pequeninos acreditem que o mundo dos crescidos é mais interessante. Será?
Ao invés de namoros, beijos e sexo precoce, brincávamos de "salada mista" num lugar mais reservado da rua. Vizinhos que se reuniam (sim, naquele tempo todos se conheciam) e um estalinho nos lábios era suficiente pra causar calafrios no estômago. E pra falar a verdade, sempre fugi deles. Sempre tinha aquela covarde que queria ver a pegações mas não aceitava beijar - eu: a voyeur mirim. Até as trapaças nesse joguinho eram saudáveis: aquele truque clássico na hora de fechar os olhos, o dedo que aponta "acidentalmente" pra pessoa por quem você arrasta a maior asa.
Hoje, já crescida, vejo o efeito preocupante dos smartphones nas mesas de bares e restaurantes: conversas desconexas entre amigos, embaladas pelo som do whatsapp ou interrompidas por alguns indispensáveis clicks do prato ou look do dia. Às vezes a comida esfria em busca do melhor ângulo. Às vezes as relações esfriam por falta de um olhar atento. Enquanto o virtual se aquece, o real vai vestindo a gélida carapuça do esquecimento ou da mutação, numa hipótese mais futurística.
Casais conversam menos, mas tiram bem mais fotos, eternizando momentos por vezes vazios. Acabaram as longas conversas presenciais. O twitter limitou até a quantidade de caracteres. A comunicação deve ser ágil e em códigos cada vez mais reduzidos. É o verbo curvando-se ao digital. Revistas deixaram de ser lidas e compradas como antes. Os sociáveis jogos de tabuleiro caíram no ostracismo. Agora é cada um em seu aparelho, jogando candy crush.
Manter um blog com textos imensos hoje em dia é mais difícil do que vender burca no Rio de Janeiro. As pessoas se contentam com curtas citações ou frases de efeito. Pouquíssimos conseguem embarcar nessa viagem louca e nem sempre aprazível.
Mas e se eu tivesse um tablet na infância? Nem eu sei como seria. Talvez tivesse sido ainda mais fechada. Não precisaria tanto de amiguinhos para brincar como precisei na época. Não tocaria a campainha da vizinha para brincar. Não teria metade das recordações que relatei mais acima. Me chamem de saudosista, mas não deixo de valorizar a informação à conta gotas. Era tudo mais devagar, intenso e humano. Diante das dúvidas, procurar alguém mais velho ao invés do google era comum. Para os trabalhos escolares, uma busca incessante na biblioteca da escola ou visita certa à empoeirada enciclopédia Barsa da sala. Nada era tão automático. Grandes perrengues não se resolviam num click.
Talvez a minha geração e mais próximas tenham sido as últimas a saberem - ao menos por um tempo - o que é ser gente sem grandes recursos facilitadores. Sim, eu enviei e recebi cartas seladas em papel. Saí no sol desprotegida quando a camada de ozônio ainda permitia alguma exposição saudável (mesmo que ao meio dia). E agora assisto a uma transição. Presencio e estranho a mudança no lifestyle talvez com a mesma surpresa de quem testemunhou a invenção da roda ou da televisão.
Acabo de aderir ao aplicativo social Whatsapp na tentativa de conseguir falar mais com minhas amigas. Darwin estava certo e a seleção natural não pára. Resta saber se eu e mais uma meia dúzia de retardatários inconformados seremos absorvidos, banidos ou daremos origem a uma nova espécie. É esperar pra ver.
A música para o post em "Mais informações"
Ao invés de namoros, beijos e sexo precoce, brincávamos de "salada mista" num lugar mais reservado da rua. Vizinhos que se reuniam (sim, naquele tempo todos se conheciam) e um estalinho nos lábios era suficiente pra causar calafrios no estômago. E pra falar a verdade, sempre fugi deles. Sempre tinha aquela covarde que queria ver a pegações mas não aceitava beijar - eu: a voyeur mirim. Até as trapaças nesse joguinho eram saudáveis: aquele truque clássico na hora de fechar os olhos, o dedo que aponta "acidentalmente" pra pessoa por quem você arrasta a maior asa.
Hoje, já crescida, vejo o efeito preocupante dos smartphones nas mesas de bares e restaurantes: conversas desconexas entre amigos, embaladas pelo som do whatsapp ou interrompidas por alguns indispensáveis clicks do prato ou look do dia. Às vezes a comida esfria em busca do melhor ângulo. Às vezes as relações esfriam por falta de um olhar atento. Enquanto o virtual se aquece, o real vai vestindo a gélida carapuça do esquecimento ou da mutação, numa hipótese mais futurística.
Casais conversam menos, mas tiram bem mais fotos, eternizando momentos por vezes vazios. Acabaram as longas conversas presenciais. O twitter limitou até a quantidade de caracteres. A comunicação deve ser ágil e em códigos cada vez mais reduzidos. É o verbo curvando-se ao digital. Revistas deixaram de ser lidas e compradas como antes. Os sociáveis jogos de tabuleiro caíram no ostracismo. Agora é cada um em seu aparelho, jogando candy crush.
Manter um blog com textos imensos hoje em dia é mais difícil do que vender burca no Rio de Janeiro. As pessoas se contentam com curtas citações ou frases de efeito. Pouquíssimos conseguem embarcar nessa viagem louca e nem sempre aprazível.
Mas e se eu tivesse um tablet na infância? Nem eu sei como seria. Talvez tivesse sido ainda mais fechada. Não precisaria tanto de amiguinhos para brincar como precisei na época. Não tocaria a campainha da vizinha para brincar. Não teria metade das recordações que relatei mais acima. Me chamem de saudosista, mas não deixo de valorizar a informação à conta gotas. Era tudo mais devagar, intenso e humano. Diante das dúvidas, procurar alguém mais velho ao invés do google era comum. Para os trabalhos escolares, uma busca incessante na biblioteca da escola ou visita certa à empoeirada enciclopédia Barsa da sala. Nada era tão automático. Grandes perrengues não se resolviam num click.
Talvez a minha geração e mais próximas tenham sido as últimas a saberem - ao menos por um tempo - o que é ser gente sem grandes recursos facilitadores. Sim, eu enviei e recebi cartas seladas em papel. Saí no sol desprotegida quando a camada de ozônio ainda permitia alguma exposição saudável (mesmo que ao meio dia). E agora assisto a uma transição. Presencio e estranho a mudança no lifestyle talvez com a mesma surpresa de quem testemunhou a invenção da roda ou da televisão.
Acabo de aderir ao aplicativo social Whatsapp na tentativa de conseguir falar mais com minhas amigas. Darwin estava certo e a seleção natural não pára. Resta saber se eu e mais uma meia dúzia de retardatários inconformados seremos absorvidos, banidos ou daremos origem a uma nova espécie. É esperar pra ver.
A música para o post em "Mais informações"
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