Pai pastel.

As vezes esqueço o jeito criativo e sereno com o qual gastava as minhas energias e curava as  pequenas melancolias. A pequena Lívia era capaz de passar horas sentada na mesa da sala de jantar transformando rolos findos de papel higiênico em bonecos engraçados ou em algum porta-lápis maluco. Também gostava de pintar macarrão de sopa e depois fazer pulseiras coloridas que derretiam ao lavar as mãos. 

E aí comecei a desenvolver dotes culinários em meio ao tédio de ser filha única.  Primeiro foram os sanduíches com molhos diversos. Depois, resolvi ousar de verdade: fiz pastéis de carne. Aproveitei uma noite em que meus pais saíram de casa e tomei conta da cozinha. Não lembro de um único azulejo que não tivesse um respingo de manteiga ou farinha. Não consigo esquecer a bronca que levei de minha mãe. Meu pai salvou a pátria: logo ele, a pessoa com o paladar mais chato que conheço, resolveu provar os pastéiszinhos no jantar. E pasmem: teceu elogios. 


Não, eu não era uma criança prodígio fazedora de deliciosos pastéis. Os tais salgadinhos eram dotados de uma massa tão grossa, mais tão grossa que eu posso jurar que estava metade crua. O recheio tinha um gosto estranho de carne quase sem tempero. Mas o que valeu aquele dia, foi o elogio do meu pai. Por mais que a idade na época fosse pouca, já era o bastante pra perceber certos eufemismos. Mas nesse dia, meu pai realmente quis que eu acreditasse no meu pastel. Quis que eu acreditasse em mim.

Na vida real nem sempre é assim. Somos pressionados na faculdade e no trabalho. O conhecimento acumulado e o rendimento figuram entre as principais metas. Estudamos e inúmeras vezes não somos  sequer reconhecidos pelo esforço, ficamos até mais tarde no trabalho e ainda assim não ouvimos nenhum 'muito obrigado'. É como se o maior dos sacrifícios  fosse nada mais que o mínimo que poderíamos fazer por nós mesmos. Fato: às vezes ninguém elogia os nossos pastéis.

Salgados à parte, hoje - 10 anos depois - faço macarrão, arroz e bolo, muito bem, visse? Mesmo que as vezes eu deixe esses pequenos prazeres de lado, alegando falta de tempo. O caso, é que depois de muito tempo voltei a ser prática, voltei a ter coragem, voltei a inovar: fiz panquecas. Ficaram muito boas. Mas já não preciso que ninguém as elogie,  graças a um certo pai.





"Depois que descobri em mim mesma como é que se pensava, nunca mais pude acreditar no pensamento dos outros." 
Clarice Lispector


minhas panquecas de carne

9 comentários:

  1. Que jeito "cuilinarístico" mais apetitoso!
    Mas,cadê a foto da deliciosa panqueca Lívia?
    Deixará água na boca não é?

    =**

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  2. o que faltou mesmo foi o diabo da foto da panqueca que inspirou esse belissimo texto... que recebe meus elogios =)
    obs. ainda quero a panqueca, se vire

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  3. Digo por experiência, a panqueca é boa. Ha!
    Ainda hoje eu n sei cozinhar nada, um dia que surgir a oportunidade quem sabe... =P

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  4. Aeeww...colocastes as "benditas" panquecas! ;)
    Apetitooosas.

    Me convida da próxima??=P

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  5. Convidaria se soubesse a tua identidade, caro Anônimo =]

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  6. Deliciosas e fiéis herdeiras de seus pastéis. (peguei a mais grossa delas)
    =]

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  7. Amei o texto!!! Realmente nosso pai elogiar uma comida... Só com muito amor ou se a comida for MUITO BOA!!!! Creio que tenha sido a primeira opção! E ao menos o nosso pai sabia o quanto estava motivando vc ao elogiá-la. Beijos e saudades. Continue postando e as panquecas deram água na boca viu????

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  8. No dia que você confiar nos seus pastéis o mundo ficará com sobrepeso de tanto talento frito.

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