Sonho.

Pensou que seria bom arrumar o baú. Desceu ao porão escuro e frio. Acendeu a luz amarelada, e pôde contempla-lo no meio daquele vão, enquanto em passos curtos, fazia ranger o assoalho. Há muito não mexia naquelas recordações. Sequer tivera o cuidado de limpar as gotas de sangue ao guarda-las. Estavam lá, no mesmo local, em estágio avançado de necrose. Era notável o aroma vermicida que inundava aquele ambiente. Fumaças fétidas vazavam das brechas da grande caixa de madeira. O cadeado, com indícios de arrombamento, não dava conta de lacrar toda aquela imundície.

Como pude ter suportado durante anos? questionava-se. E lembrava das vezes em que sorrateiramente percorria as mesmas escadas, abria a tal arca e chorava, lamentando o decaímento de tão amadas lembranças. tornara-se duentio, o hábito, há muito tempo. Era espécie de ícone de adoração, bomba atômica do "Planeta dos macacos", um verdadeiro cavalo de tróia putrefado. Já havia sugado tudo o que havia de bom em tudo aquilo, mas desde outros tempos, envenenava-se de algo que chamava vulgamente de amor. Embalsamava o que já não tinha jeito. Enfeitava, cobria de máscaras e apetrechos. Dramatizava e criava roteiros mirabolantes. Ensaiava reações, respostas e aguardava ansiosa o gran finale triunfante.

Mas o dia haveria mesmo de chegar. Seria monólogo, sem platéia. Teatro limpo e bem iluminado. livraria-se das ataduras, enquanto proclamaria as suas não-mumificações. Partiria os grilhões da nostalgia. Sabia que aquilo era um assunto entre ela e ela mesma, diferente do que sempre planejara. Não haveriam vencedores nem vencidos. Haveria paz, somente. Adeus terceira perna. 

O baú não seria queimado em praça pública. Ninguém precisa ver, pensou. Levou para um campo, bem verde, banhado por luz lunar cintilante. Não tinha álcool, ou querosene. Mas jogou por sobre a madeira velha um vidro inteiro de perfume. Ateou fogo, e em meio ao crepitar da enorme chama, pôde enxergar linhas de libertação. Por surpresa, pequenas explosões simulavam fogos de artifício, e podia ver gotas de prata bailando no céu estrelado. Uma lágrima de alívio escorreu-lhe por entre os poros dilatados da face, enquanto contemplava o último fio de fumaça. Notou que o céu enfeitava-se em tons de lilás, com nuances levemente alaranjadas. As estrelas perdiam o brilho a espera do sol.

Sentiu que era hora de ir. Tirou os sapatos, para melhor sentir  a ramagem. Levantou a barra do vestido, fechou os olhos, e sentiu um pingo na face. Depois dois, três, quatro: as nuvens poucas, precipitaram-se. Podia sentir a pureza da água em cada centímetro do corpo. E veio a vontade de pular, de correr e de rir, sozinha. Levantava as mãos pro céu e sussurrava agradecimentos. Girava em meio ao nada, feito criança. Quando os primeiros raios solares atingiram o rosto, voltou para casa. E acordou bem sequinha, em sua cama (com os pés repletos de fiapos de grama).


7 comentários:

  1. Isso que é uma vontade de se livrar de algo (forçadamente, mas se livrar) Quem disse que eu não leio?? una!

    Fuiz

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  2. Essa é de fato uma escritora de verdade. Teares, lunares, lugares tudo na frase certa, na palavra tácita. Maravilha!

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  3. Lindooooooooooo,,, tbm leio tudim!! :***

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  4. Um conto pra se encantar!
    A foto não poderia ser mais real!

    Esse é o fantástico em seus textos: cambaleia sempre entre o real e o abstrato!E nós aqui, nessa amiudada tensão (cai ou não cai), sentimos tocar suas palavras de liberdade.

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  5. Eu vejo luz...não a que vem de um crepitar de chamas debruçadas sobre um baú de recordações. Eu vejo luz em Lívia, uma luz tão clara e tão forte que chega a deixar cor de mulher, linda e misteriosa, nas palavras desta livre moça.

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  6. Nali, você sempre pegando pesado.

    :*

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  7. Só agora criei coragem para ler...hehehehe
    E o quanto fui gratificado por isso...
    muito lindo...

    só uma duvida...isso aconteceu de verdade????

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diga aí

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