Meu namorado

Sempre tive mania de achar graça em palavras. Na infância, cada vez que descobria um nome novo e curioso gargalhava sozinha. Lembro de uma nova vizinha, recém chegada para morar com a avó em minha rua. Ela me disse seu nome: Kakala. Não consegui conter o riso. Não era chacota, embora tivesse grandes chances de ser mal interpretada. Por isso mesmo, achei de bom tom convida-la pra um banho de piscina à tarde, pra me redimir. E foi assim toda a vida: ouço a palavra, acho graça, tento pronunciar e sinto cócegas nos lábios: desabo em gargalhadas ou em estranhamento. É o gozado - e excitante - desconforto de não saber pronunciar o novo. Ok, sei que minha confissão não é coisa de gente muito normal. Mas sou dessas que vêem graça demais em bobagens e riem de defuntos em velórios.


Mas e quando sentimos o estranhamento com palavras comuns, usuais? Palavras ou expressões que até então achávamos simples e corriqueiras em nossa boca e na dos outros. Pois bem, vou contar mas não caçoem: esses dias me flagrei rindo da expressão "meu namorado". Isso mesmo. No meio de uma conversa com uma amiga, eis que ela pronuncia a tal expressão. O pronome possessivo acompanhado do substantivo que designa aquele com quem firmamos um compromisso sério. Estranhei tanto que tentei repetir em voz alta. Acabei sentindo aquele pequeno tremor nos lábios novamente, aquela impressão de que estava falando outro idioma ou coisa assim. Quase sorri. 

Percebi, imediatamente, o motivo do meu estranhamento. Chamar alguém de meu 'alguma coisa', hoje em dia é coisa rara. Pelo menos comigo, há muito tempo não acontece. Logo eu, que já fui tão "namoradeira". Hoje prefiro esperar o próximo trem. Tenho evitado embarcar precipitadamente em qualquer coisa. Viagens sem futuro ou destino já não fazem o mesmo efeito.

O fato é que os trens estão rápidos demais. Incontáveis vagões correm desesperados, como se estivessem atrasados cem anos para viver. Saem dos trilhos, fazem atalhos por trás das montanhas: vale tudo quando o assunto é "curtir a vida adoidado" antes que o tempo passe e precisem, enfim, estacionar pra que alguém possa entrar. 

Nunca gostei de "ficar", não tenho jeito pra passageira que viaja em pé, e logo tem que desembarcar. Por esse motivo, estive quase toda a minha adolescência e início da fase adulta comprometida. Só que que  "comprometida" nem sempre é bom. Quando algo é pra ser bom, é bom e pronto. Desconfio demais dessa palavra: com-pro-me-ti-da. Com, prometida, metida, tida. Tento desmonta-la como se fosse máquina, pra achar a peça defeituosa.  

Talvez eu tenha superestimado o ato de  "namorar sério". Nem bem ficava com alguém legal e já era capaz de prever um futuro juntinhos e entrelaçados até a nossa terceira geração de herdeiros. Exageros à parte, nunca gostei de abrir mão do romantismo, aquele, exclusivo de quem namora "firme". Queria o conforto e o prazer de viver todas aquelas datas: dia dos namorados, aniversário de namoro... A pegação sem compromisso até agrada, mas não me satisfaz. 

Queria decorar e ser dona dos cheiros do outro, descobrir o jeito certo de fazer carinho e escolher um sinalzinho no corpo dele pra chamar de meu. Queria beijos e mais beijos até criar tantos tipos e jeitos diferentes, que vez ou outra pensaria ter desaprendido os primeiros. 

Gostava, confesso, de estar de mãos dadas e trocando olhares cúmplices. Não resistia a um "Eu te amo". E os planos, então? Era uma festa poder traça-los em companhia do outro... e estar convicta de que não estaria só quando os realizasse, sobretudo. Namorar era garantia, ou ao menos aumentava bastante as chances, de ganhar todo dia uma olhada dos pés a cabeça seguida do clássico elogio:  você está/é linda! Estar com alguém era, além ter companhia pro filme, poder conquistar feito gato manhoso o colo do outro. Cochilar lado a lado nas tardes xoxas de domingo: era o que eu queria. 

Mas a gente cresce, vive, amadurece um pouco e consequentemente as coisas mudam. Os quereres e estares vão se transformando e inevitavelmente nos pegamos situados naquela fase nebulosa entre adolescência e o que deveria ser a vida adulta. Desejamos o que já não é possível, ao tempo que somos apresentados à outras possibilidades e compelidos à novas prioridades. 

Já não temos dia e noite disponíveis para o outro. Já não reparamos tanto em cada expressão do parceiro - os smartphones roubaram metade dos olhares atentos. Na década de "2010" (que estranho falar isso. o certo seria década de 10?), ao planejarem ter algo sério com alguém, menos da metade dos pombinhos fecha os olhos e imagina o casal feliz e de mãos dadas desfilando por aí ao som de sininhos. A maior parte, mal pode esperar a mudança de status no facebook e tenta, previamente, contabilizar o número de curtidas. É o que mais importa: criar um belo álbum de fotos do casal e compartilhar cada momento e passeio fodástico fantástico com os 1024 "amigos".  Mesmo que na vida real não seja tão legal assim. "Seu recalque bate na minha bunda e volta", algumas legendam, enganchadas no pescoço do pobre. Oremos. 

O fato é que sou parte da geração perdida que não sabe mais o quanto esperar das pessoas. Sei que o manual-da-pessoa-moderna-e-bem-resolvida aconselha claramente: evite criar expectativas. Mas sou expectante, sonhadora e ansiosa por natureza. Nem sempre quero consigo me espelhar  nessa cartilha-da-mulher-maravilha. Engolir meus coraçõezinhos flutuantes pra que ninguém possa enxergar e caçoar da minha verdade é bem indigesto.

Maravilhoso poder respirar leve e dizer "deixa ser como será", "let it be"... mas também é tão bom quando os nossos desejos se realizam, não é mesmo? Sou daquelas à moda antiga e sei que tenho companhia nesse barco. Bem que a vida poderia abrir espaço pra todas as espécies: de modernas à sonhadoras. A mistura perfeita entre essas duas, venho tentando, mas estou longe de descobrir. Quem inventou a fórmula desse equilíbrio bem quem que podia me passar por inbox

Dane-se quem não se adaptou ao século 21 (grupo no qual eu me incluo). Já não podemos ter tantos desejos épicos. Permaneço observadora, sentada no banquinho da estação. Aproveito a calmaria para transferir meus pensamentos ao caderninho de anotações. Talvez seja saudável fazer essas descobertas solitárias. 

Engulo o meu romantismo e ele desce rasgando, se querem saber. A mente da nova-mulher-assustada, volta vez ou outra aos tempos de menina que lê sem culpa suas historinhas encantadas. Imagino por um instante, como seria legal se estivesse, na verdade, na estação King's Kross, esperando o expresso de Hogwarts ou de alguma outra escola que ensinasse a fazer mágica com a vida. Ta vendo? ainda não consegui fazer a travessia. 


 Meu-namorado. Pratico insistentemente. Mas os lábios tornam a estranhar e confundir.







Não esquece de curtir se tiver gostado! 

6 comentários:

  1. Como você escreve bem, quando vi o tamanho do texto pensei que ia acabar não lendo tudo, mas comecei a ler e a leitura me prendeu até o final ^^ Adorei seu blog, realmente muito incrível, tem tudo para fazer o maior sucesso; Já estou seguindo, segue o meu também?
    www.espacegirl.com

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    1. Que bom que gostou, Gabriela! vou visitar o seu sim!

      beijos!

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  2. Muito Bom.... vc sempre arrasa....... rssss (+penso k os fãs devessem merecer um pokito +d atenção, não muito, +um pekeno comentário pra gente já sesria d+...)

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  3. Nossa, confesso que ao ler seu texto me identifiquei muito com o ponto de vista e a interpretação diante d as nomeações e ambições de hoje em dia. Estava a pensar, sobre a possessividade presente no termo " meu namorado". Se para desiguinar o companheiro, já é assim, que dirá a relação. Ou seja ao apresentar a pessoa como meu namorado, você coisifica tudo, como se fosse um acessório para o dia dia. Além de reduzir a pessoa ao simples fato de ser seu namorado. Aff, tem coisas q nem se pode permitir pensar, porque quanto mais penso, percebo o quanto não me enquadro na maioria. Bom, parabéns pelo texto e por oportunizar esse espaço de idéias ao compartilhar suas reflexões. E um sinal, que não somos ermitão, no modo de pensar.

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