Sei que ele teria morrido se algo de ruim
acontecesse comigo. Não queria que eu fosse assaltada ou vista como objeto.
Cuidava com carinho do meu cruzar de pernas e ajeitava a blusa quando o
decote parecia avantajado. Nunca deixava que eu andasse desprotegida na
calçada: me trazia do lado das casas, jamais na beira da rua. Fazia questão de
levar-me aos lugares de mãos dadas: e quem disse que pra dar carona precisa ter
carro?
Era do tipo companheiro: até em fila de banco. Suportava de bom grado a
missa aos domingos, mesmo não seguindo nenhuma religião, só pra não perder uma
oportunidade de estar comigo logo pela manhã. Sabia um jeito de amenizar as
minhas insistentes dores de coluna. Aliviava o meu peso, abraçando
enquanto erguia levemente o meu corpo, quando estávamos há muito tempo em pé.
Desenvolvia técnicas rudimentares e lindas pro meu bem estar o tempo
inteiro.
Deixava que eu
cochilasse por horas em seus braços: pouco importava se ficasse dormente. E
quantas vezes ouvi suas risadas ao despertar e notar que não sentia os seus membros. Nada era dor se fosse pra ficar junto. Escovávamos os dentes juntos,
olhando no espelho a espuma do outro. Conversávamos com a boca suja de pasta de
dente, furtando, vez em quando, um beijo ou outro. Passava remédio nas minhas
manchas brancas, uma a uma, sem o mínimo sinal de cansaço ou desinteresse.
Reclamava quando eu me abanava nas altas temperaturas: segundo a sua lógica, o movimento
repetido com as mãos, provavelmente só geraria mais calor. E então me abanava,
suportando o calor dobrado, só pra me ver melhor.
Elogiava cada
traço do meu rosto. Do contorno arredondado do nariz, à peculiaridade de um dos
meus dedinhos do pé. Costumava valorizar a minha simetria e na falta de outra
qualidade, eu não ter o nariz torto já era um alto indicativo de beleza. Tinha
hora marcada pra me ver. Pontualmente aparecia na porta, todos os dias, banhado
e alimentado, pronto pra passar as próximas horas conversando, rindo e me
beijando, competindo ferozmente com a novela. Como se fosse a primeira vez.
Compartilhávamos
de algumas preferências. Íamos, aos poucos, formando o "nosso" gosto.
Gostávamos de coca cola e pão de queijo. Gostávamos de pão com atum. Gostávamos
de lasanha. Gostávamos do sanduíche de salsicha do kombi da praça. Existiam
também as diferenças: Ele não gostava de bife (tinha verdadeiro trauma), eu
gostava. Ele colocava pouco Nescau
(ou seria o achocolatado da garoto?) no leite e acrescentava algumas
colheres de açúcar, Já eu, só usava o Nescau. Ele era craque em física, eu em história. Eu era a emoção, ele a razão. Mas concordávamos que o Mc Cheddar era o mais gostoso.
Tentamos fazer
exercícios juntos. Éramos nossos próprios entusiastas. Elogiava os recém
desenvolvidos músculos dele - já na primeira semana de malhação. E ele me achava gostosa, no auge dos meu manequim 34. Nos
víamos mesmo com a lente do amor. Pedia, como quem não quer nada, que ele me
escrevesse uma carta, todos os meses. E ele acatava, mesmo não levando tanto
jeito com as palavras. Estudava comigo horas à fio. Insistia em tentar romper
os meus bloqueios com os números. E às vezes conseguia.
Deixava que eu me
aconchegasse em seu corpo quando sentávamos em qualquer banco. Cruzava os
braços em minha cintura, enquanto eu descansava as minhas costas em seu peito.
Tolerava as minhas gripes, doenças e até mesmo o dia em que eu não conseguia
parar de vomitar. Segurava a minha mão enquanto eu tomava chá amargo. Não gostava de me ver chorar. Achava lindo, mas tinha
pena. Antes que minhas lágrimas pensassem em cair, aparava-as com os próprios
lábios, em sinal de afeto. Beijava os meus olhos e ria, dizendo com ternura '- minha menina'.
Se procurar bem, ainda posso encontrar alguns sinais. Num caderno antigo, num diário de dois mil e antigamente, numa fotografia escondida lá no fundo do baú. Imortalizado em minha mente, em ações, olhares, sorrisos e objetos que nunca joguei fora.
Na vida real, entretanto, já não existe, nem eu. Já não se veste com as mesmas roupas e talvez nem coma as mesmas coisas. Me olha, mas seu olho não brilha, tampouco o meu. Não se lembra que nos casaríamos no dia 29 de fevereiro, aos 25 anos. Não é o mesmo, e eu também não. E isso não é ruim.
Agora coloco pouco Nescau no leite. Evito tomar coca-cola. Abusei atum. Peço a saltenha de carne, ao invés dos mesmos pães de queijo na lanchonete. Mas continuo, como pode ver, pensando essencialmente em comida.
Não sei mais quem você é. Nem aonde mora. Você não existe, e existe. Com o mesmo nome, com o mesmo rosto. Está seco e desidratado entre as páginas dos meus livros. Como uma folha, antes tão verde e viva, e hoje imortalizada. Congelada por um tempo que já foi e não é mais. Nem vai ser.
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