A moça avançou pelo portão devagar, pedindo licença, cabisbaixa. Já na porta limpou a sola das sandálias excessivamente no carpete, como se fosse indigna de pisar naquele chão tão nobre. De fato, não achava de bom tom manchar o assoalho com sua sandália gasta, de tantas andanças. Convidada a sentar no sofá, olhou de soslaio para os pés descalços, enquanto segurava o seu calçado com uma das mãos e recusava solenemente: - assim ta bom, dona.
Raimunda passaria a trabalhar na casa. Com o salário acertado e as tarefas definidas fora, finalmente, apresentada ao quartinho dos fundos, onde mal cabia uma cama. Naquele colchão antigo passaria as noites, agradecendo em silêncio a Deus por ter saído da escassez total a qual estava habituada. Agora podia comer feijão, arroz, carne e salada todos os dias. Mas esperava os patrões terminarem as refeições, é claro. A regra era tácita, porém clara: Não podia juntar-se aos outros na mesa.
A criança da casa era filha única. E graças ao bom Deus não atrapalhava o serviço de Raimunda. No máximo, corria serelepe pela casa, sempre despenteada e falante, com os olhos bem vivos. Vez ou outra, a menina solitária fazia companhia à empregada. Puxava papo e lavava alguns pratos sem compromisso, só por diversão.
Eu tinha descoberto as letras. Fui alfabetizada no ano anterior e o maior prazer, desde então, era zanzar pela casa com cadernos, lápis e uma pequena lousa com giz branco. Certa feita, eu e Raimunda - fiel companheira de todas as noites - estávamos sentadas na mesa da cozinha. Ela jantava, enquanto eu rabiscava no caderninho quantas palavras pudesse lembrar. Achava mágica a alquimia das letras. Desde cedo desfrutava do mundo paralelo da escrita e dos livros.
Sempre curiosa e ávida para aprender também sobre as pessoas, arrastei o meu caderno sobre a mesa, aproximando-o de Raimunda e propus, inocente: - Escreve o teu nome completo aí? Raimunda engasgou, desconversou e baixou os olhos mais que o comum. Custei a entender, mas me dei conta: a moça era era analfabeta. Minha mente infantil não conseguia entender o porquê de uma adulta não conhecer as letras e não saber rabiscar o próprio nome. Como assinaria os seus próprios documentos? como escreveria uma carta? como executaria os passos de um livro de receitas ou entenderia as placas com nomes de ruas e lojas? Como anotaria o telefone de alguém, ou algo importante, como lembrete? Como saberia qual ônibus tomar? Ser analfabeta na cidade deveria ser um verdadeiro tormento.
A partir desse dia, nossas noites mudaram. Com 7 anos me declarei professora. Iria ensina-la tudo o que sabia e o que considerava o mínimo aceitável: escrever o próprio nome. Não foi fácil. A moça nunca frequentara uma escola. Seu cérebro parecia infértil à qualquer tipo de aprendizado. Mas não desisti. Desenhava todos os dias na lousinha: "Raimunda Nunes Ferreira" e insistia para que ela copiasse em meu caderno até não aguentar mais. Ela queria parar. Não tinha muita esperança que aquela brincadeira surtiria algum efeito concreto. Mas quando coloco uma coisa na cabeça, sai de baixo.
Depois de algumas semanas insistentes, os garranchos tortos aos poucos foram tomando formas arredondadas e culminaram na tão esperada assinatura. Raimunda recebeu, enfim, o diploma da minha escolinha. Parabenizei-a, orgulhosa. A moça tinha aprendido direitinho. Recomendei que se matriculasse em uma escola assim que pudesse e insistisse no aprendizado.
Algum tempo depois, no início de outubro, Raimunda chegou em casa serelepe. Estranhei. Era de pouco papo e olhos baixos. Me chamou na cozinha, e então pude fitar-lhe os olhos: estavam brilhantes e marejados. Um sorriso como eu nunca tinha visto emoldurava-lhe a face. Não precisaria ter dito muito, mas a moça me cobriu de agradecimentos e disparou : - Eu acabei de votar, Lívia! assinei meu nome certinho!
Não entendi a dimensão da festa, embora tenha ficado realmente feliz. Jamais poderia imaginar que minhas aulinhas abririam as cortinas daquela moça tímida e sem perspectivas para uma nova realidade. Pela primeira vez notei em sua voz sofridamente submissa um tom esperançoso.
Raimunda se despediu de mim. Não trabalharia mais em minha casa. Cumpriu com os seus últimos afazeres e arrumou a pequena mala. Caminhou em direção à porta com a cabeça reta e pisou firme no assoalho com seus sapatos, sem pestanejar. Sentia-se apta, finalmente, a não reverenciar o chão brilhante. Olhou pra trás num aceno carinhoso. A dignidade preenchia lentamente as linhas de seu rosto precocemente envelhecido evidenciando a mudança. Estava pronta pra encarar o mundo: agora Raimunda tinha brilho nos olhos.
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