Camarote da pobreza

Não fosse a visão alarmante que tive no percurso do carnaval de Salvador, diria que só conseguia ouvir o trio. O bater de tambores, os gritos eufóricos dos foliões e o swing da guitarra embalando milhares de pessoas já altas horas da madrugada era contagiante. Entretanto, foram os vendedores de cerveja, os donos da minha atenção quase hipnótica. 

Eram muitos. Organizavam-se em pé, atrás de pequenas mesas com isopores, de forma enfileirada na calçada até chegar ao monumento conhecido como "Gordinhas", em Ondina. Garoava muito. O relógio marcava mais de 1 hora da madrugada. Algo soou estranho, para não dizer cruel. 

Atrás das bancas de cerveja não estavam adultos. O que vi foram crianças da mais diversas idades, idosos e até bebês de colo, em plena garoa. Eram famílias inteiras - negras e suburbanas - "aproveitando" a folia pra ganhar algum trocado. Senti um nó no peito. Meninos franzinos vendendo bebidas a rapazes troncudos e musculosos em seus abadás apertados, em plena madrugada. Trabalhavam concentrados, renitentes, lutando contra o sono, até o dia amanhecer. 

Eles se revezavam. Uma adulta saía e deixava seu filho de 7 anos no comando da barraca, enquanto amamentava sentada no chão, em um lençol improvisado o seu bebê de poucos meses. Do outro lado, uma senhora idosa atendia aos fregueses incessantes, descansando furtivamente  alguns segundos em uma cadeira metálica. E a cenas se repetiam. Crianças e mais crianças povoando as calçadas a trabalho, como mini adultos. Idosos de pé, no frio e na chuva lutando contra o cansaço do trabalho árduo de dias a fio de festa.

O que me intrigava, entretanto, era a invisibilidade que  tinham. A cena era clara, gritante, absurda...e mesmo assim as pessoas continuavam sorrindo e bebendo naturalmente, como se estivesse tudo "nos conformes". Policiais passavam, indiferentes. Artistas consagrados viam tudo lá do alto, silenciosos. As pessoas compravam sem culpa o seu divertimento, enquanto os favelados vendiam coisas, à margem. 

Como era a minha primeira experiência no carnaval soteropolitano, não pude deixar de notar essas minúcias com estranhamento. Aquele mesmo olhar que todos têm por um breve instante e que logo em seguida é substituído pela aceitação. Com os argumentos de "ao menos estão trabalhando" ou "eles já estão acostumados", ou "aqui isso é comum", pessoas dos mais variados níveis de estudo e destaque, desfilam avenidas acima como cúmplices despreocupados. 

Comentei a minha inquietação com alguém ao lado. E vi a expressão surpresa, olhos arregalados e envergonhados em direção àquelas pessoas. Era o olhar de quem acabava de ver a cortina do discernimento  se abrir repentinamente. Ficamos pensativos e em silêncio, por alguns instantes. 

Não contente com a minha observação distante, me dirigi ao lado de uma das mesinhas. Atrás dela estava "Bude" e seus dois irmãos, que jamais vou esquecer. Teimei em ficar próxima a madrugada inteira. A partir dali, o trio seria apenas plano de fundo para o que mais valeria a pena. Comprei algumas bebidas, até ganhar um pouco de confiança dos garotos e num dado momento, não aguentei e me dirigi ao menino: - ei, como é o seu nome? A expressão no rosto era a de quem estava usando a capa da invisibilidade e de repente foi descoberto. Mas ao invés de decepção, tive em troca um sorriso - quase de gratidão - acompanhado de prosas e gentilezas durante toda a noite. 

Quis saber onde moravam, como viviam, se estudavam, o que gostavam de fazer. Quis saber o que os trazia ali e até quais as atrações mais esperadas naquela noite. As vezes desconfiados, noutras receptivos, eles me respondiam - inocentemente - o que eu já suspeitava. Perguntei ao mais velho sobre os planos para o futuro, se pensava em estudar. Tomado pela surpresa, o rapaz pareceu vago. Percebi ali, que todo e qualquer esforço feito pela inclusão de jovens na universidade ainda é muito pequeno. O abismo permanece imenso, mesmo com as temidas cotas e bolsas de estudo para os negros e pobres. Uma grande parte dos jovens não conseguem vislumbrar algo mais promissor que vender cervejas no carnaval ou contentam-se com qualquer espécie de subemprego. 

Poderia comentar a afronta à Constituição, ao Estatuto da Criança e do Adolescente e a diversas outras normas e valores morais que aquele cenário encobria. Poderia tentar elencar razões. Mas isso as pessoas já sabem a grosso modo. Destaco, sim,  a importância do povo nesse contexto. Independente de compartilhamentos em fotos de criancinhas magras quebrando pedras, expostas no Facebook, ou de curtidas em páginas de Ongs politicamente corretas, aonde está o nosso olhar crítico quando a degradação distante, estampada nas redes se transporta para o plano palpável? 

Na vida real não tem "curti" nem "compartilhar". Mas será que quando somos surpreendidos e subtendidamente convidados à ação de verdade, que envolve levantar da posição de conforto e hastear  uma bandeira "na vera" damos conta do recado?  Fica o convite à reflexão. A mim, a você e a quem mais tiver contato com esse texto. Aproveitemos a festa e a vida empenhados em não passarmos totalmente imunes às doenças sociais que nos cercam. Nos concentremos em não travestir o cruel de normalidade. Já é um bom começo.

Apelo: Protesto nas imediações do Clube Espanhol, onde estavam alguns dos camarotes mais badalados do carnaval (Skol, Reino, Via Folia, entre outros) no ano de 2009. Fonte: Bahia notícias




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