Vamos fingir que nunca é tarde.



Você se foi antes que eu pudesse dizer o quanto gostava do seu sorriso falhado. Mas não é qualquer falha. Tem que ser aquela entre os dois dentes da frente. Exatamente a que você tinha. Não me pergunte o porquê dessa preferência, mas a tal falhinha mexe comigo desde sempre. Você se foi antes que a gente conseguisse dançar as músicas no ritmo certo. Não que dançar errado com você fosse algum problema. Eu gostava do jeito com que você me abraçava ainda mais forte quando eu errava o passo e pensava em desistir. Acho até que as vezes errava de propósito...só pra ver você sorrir mais uma vez. Confesso que nunca consegui dançar tão mal com alguém e ainda assim, superar a vergonha e continuar me movendo descompassada, só pra sentir sua mão tocar a minha e leva-la ao seu peito. Eram frações de segundo, músicas que duravam 2 ou 3 minutos e já me faziam ganhar o dia. Que mágica você fez, menino? 

Mas o destino não foi nada gentil. Alguns dias, alguns olhares, algumas danças. E você se foi pra sempre. Como eu poderia prever que 'deixar para amanhã' poderia acabar sendo um erro imperdoável? Como prever o improvável, o inaceitável e a coisa mais cruel que poderia nos acontecer? nem mesmo a minha mente pessimista poderia chegar a tanto. Esperei, evitei o quanto pude, adiei. E aí recebi a notícia. A vida do garoto que mais parecia um anjo estava com as horas contadas.

Tive esperança até o último segundo. Sentada no banco do hospital imaginava em minha mente tudo o que ainda poderia acontecer. Ensaiava o que eu iria te dizer. Eu iria te ver assim que liberassem as visitas, sabe? Já estava tudo 'certo' pra mim. Entraria no quarto e iria sorrir como se não enxergasse os seus hematomas. Me aproximaria e pegaria na sua mão, até ter certeza de que você ainda me reconhecia. Tentaria com paciência encontrar alguma parte do seu rosto que não estivesse dolorida e faria o carinho que nunca fiz. E você teria um momento de surpresa e até felicidade, mesmo em meio aquela situação trágica. Eu com certeza gaguejaria alguma besteira. Provavelmente ficaríamos apenas calados. E eu poderia ficar calada por horas. Poderia ver você dormir. Só pra depois ver os seus olhos se abrindo. 

Assistiria de longe você receber as suas visitas. E me divertiria com o estranhamento dos seus amigos, que não entenderiam o porquê da minha presença insistente ali. E aí eu perceberia que naquele momento estava em suas mãos. Seria incapaz de dizer qualquer outro "não" relacionado a você. Seriam só sim's até você enjoar. 

Minha maior angústia seria a vontade de não ir embora. Acho que ficaria por aqui mesmo, só pra assistir a sua recuperação bem de perto. Pensei até no ano novo. Em como seria passar a virada no hospital (porque o hospital, incrivelmente seria o lugar onde eu mais gostaria de estar naquele momento). Como eu queria te ver lutar. Como eu queria estar lá te vendo resistir e superar todas as dores que pudessem te acometer. Como eu queria tentar te arrancar sorrisos na hora em que você precisasse. Foram tantos quereres... todos despertados de forma violenta e instantânea. Pensamentos bonitos que tive, enquanto aguardava ansiosamente por notícias tuas do lado de fora. 

Você não viveu. Mas eu também não vivi. Não vivi para ter coragem de ter feito tudo isso antes, bem antes... antes que fosse tarde demais. Nunca me importei muito com aquela frase clichê "não deixe pra fazer amanhã o que você poderia fazer hoje", até senti-la na pele, da forma mais dolorosa possível.  Meu mundo parou por alguns instantes. Não poderia ser verdade. Eu tinha te visto feliz, sorrindo, há menos de 24 horas...e agora você tinha partido antes que eu pudesse dizer ou fazer qualquer coisa. 

Ok, alguns podem me chamar de louca, exagerada. '- Você está chorando demais', disseram. Mas minha cabeça estava prestes a explodir. Ver os teus olhos fechados para sempre foi a pior coisa que eu poderia ter visto. Tentei mentaliza-los verdes e vivos, como eles eram. Mas nada seria capaz de diminuir a minha dor. Quis pegar em suas mãos machucadas, mas não consegui alcançar. Era muitos iguais a mim. Muitos amigos e familiares chorosos tentando dar o último adeus. Virei as costas e saí, sem palavras. Só conseguia sentir aquele aperto crescendo aqui dentro. 

Você não fazia parte dos meus planos, nunca fez. Mas o destino me pregou uma peça. E fez com que você participasse do meu convívio de forma tão breve mas tão marcante. A praia não seria a mesma sem você. Quem dançaria desajeitadamente feliz comigo?  Quem me olharia com aquele jeito tímido mas tão decidido? Quem mais poderia me arrancar um sorriso de maneira tão fácil e pura? Quem mais me deixaria tão confusa? Quem mais seria capaz de descongelar o meu coração que já estava em stand by por tanto tempo? Quem mais poderia me despertar aqueles sentimentos e sensações tão adolescentes e doces? Só você. Você vivo. E digo mais: gastaria todos os meus pedidos de todos os anos novos pedindo você de volta.

Meu priminho de três anos falou que se a gente rezasse você voltaria à vida. Ele ainda deu a ideia de pegar um avião e ir te buscar la no céu. - Quem mandou vir pra cá tão cedo, moleque? Vamos voltar! Todos nós precisamos de você. E você voltaria de bom grado, pra viver conosco por pelo menos mais uns 80 anos. 

Hoje é dia 31 e ontem foi quando te vi de longe pela última vez. Te guardaram junto com os mortos. Que ironia. Logo você. O galego que estará para sempre vivinho da silva, mais do que nunca, aqui, dentro do meu coração.


Saudades eternas, meu anjo. 

Um comentário:

diga aí

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