presente dos céus


Estava no ônibus, de volta à realidade depois de alguns dias de férias. A poltrona reclinável - que nunca reclina o bastante - maltratava as minhas costas. O gingado incessante daquele transporte parecia me provocar: oscilava entre náuseas e dores que percorriam corpo e mente entre um sacolejo e outro. Não era só o incômodo físico. Era o pesar da volta. Depois de anos de idas e vindas, ainda não tinha aprendido a árdua técnica do "dizer bye bye". 

Folheava um livro sem sucesso, posto que paciência e concentração eram artigos raros naquela tarde de nuvens cinzentas. Podia ouvir som de música ruim, espirros e fechadas bruscas de porta, mas um único ruído me interessava: atrás de mim tagarelava sem parar uma criança de aproximados 5 anos. 

O menino narrava incansavelmente as sua grande aventura na capital: tinha tomado o primeiro banho de mar, brincado na areia branquinha e passeado no shopping. Entre um relato e outro, mudava de assunto: observando as formas das nuvens apontava animais, super heróis e até países inteiros recortados no céu.

Apesar da oitiva atenta das histórias e sacadas do pequeno anjo, não consegui identificar o sexo através da voz. Era fina, cheia de sotaque, bonita, infantil e unissex.

Ao anoitecer, pude notar o esmaecer das palavras antes tão serelepes. O sono tinha chegado e pelo visto a mãe tentava induzir uma soneca em sua cria, antes tão agitada. Foi aí que ouvi um sussurro calmo e ao mesmo tempo ansioso: 

- Mamãe, quando vamos voltar à praia?
- Xiii... agora só quando você crescer.
- E quando é que eu vou ser grande?
- Quando completar sete anos.
...
- Mamãe?
- O que é, criatura?! (já meio impaciente)
- Vou crescer como menino ou como menina?
- (a mãe prende o riso, da um suspiro, e responde) Como menino, lógico, né meu filho?

A frase ecoou no ônibus silencioso e  pude ouvir alguns sons de riso, dos que estavam mais próximos. Eu também sorri. E todas as dores ficaram mais leves. E a volta não pareceu mais tão triste. 

O pequeno anjo salvou a minha tarde - quiçá a vida - naquele dia.
 

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