Infância amorangada - parte I

         O morango era de plástico. O vermelho acrílico brilhava na palma da mão e os olhos atentos de minha mãe aguardavam a minha reação de surpresa ao descobrir o primeiro batom. Ao abrir: surpresa! Algo vermelho, meio gosmento, que eu mal sabia o que era. - Passa na boquinha, filha. Minha mente de criança mal sabia distinguir um cosmético de uma geléia cheirosinha. E assim eu utilizava: passava, olhava os lábios carnudinhos e vermelhos no espelho e logo em seguida lambia até não sobrar mais nada.
        Agora, me vejo numa daquelas tardes de domingo. O calor escaldante não desanimava a turma de primos que brincava até o escurecer no quintal da rechonchuda avó. Entre pés de pitanga, acerola, tamarindo, carambola, manga, limão, cajú, laranja, seriguela e côco, nós brincávamos: Fazíamos as palhas pendentes do coqueiro de cipós, e como pequenos tarzanszinhos sobrevoávamos baixinho toda aquela imensidão de verde. Criava eu mesma venenos para os formigueiros. Aliás, o meu sonho era criar um potente veneno que matasse formiga e gente - pasmem, mas eu odiava uma prima -.
        As minhas substâncias letais, baseavam-se, geralmente em água da torneira - segundo minha mãe, um líquido extremamente tóxico, por conter 'bichinhos' muito nocivos para qualquer organismo -, areia - onde eu sabia que todos pisávamos com os pés carregados dos mais variados micróbrios e Sultão (o cachorro) fazia xixi indiscriminadamente -, folhas desconhecidas - minha avó sempre aconselhava-nos a não comê-las, já que algumas eram prejudiciais a saúde - e umas frutinhas vermelhas, que davam somente nas samambaias da varanda.
          Nunca consegui eliminar as formigas ou matar minha pobre prima (que não vou dizer o nome aqui, tadinha). O fato, é que hora ou outra, dávamos um pequeno intervalo da brincadeira e íamos os primos, suados e assanhados comprar pick-nicks (geladinho ou dim dim, se preferirem) na vizinha. Ainda lembro os sabores mais pedidos: Ricardo adorava o de Nescau, mas a maioria esmagadora preferia o de morango com leite. É o gosto da minha infância. Sentávamos no banquinho do jardim em frente a casa da minha avó, e competíamos para ver quem sabia fazer o furo mais eficiente no saquinho. Um, fazia um buraco enorme: - assim como mais rápido, gabava-se. Outro, fazia um pequeno furo: - assim dura mais e aproveito por mais tempo.
          Assim passávamos a tarde: Por vezes brincando com bolas de gude, noutras, usando o caule de alguma planta como canudo para fazer bolinhas de sabão (com os copinhos com água e detergente que a minha avó nos dava). Fazíamos ainda, do pé de seriguela a nossa nave espacial e cada um, em um galho diferente, possuía uma função. Fazíamos bolinhas com  misturas de terra e água e brincávamos de guerra também, porque não? (pena que naquele tempo ainda não existiam aquelas propagandas do OMO que estimulam os pais a deixarem que os filhos sujem toda a roupa e depois lavem com um sorriso.) Geralmente, essa brincadeira terminava em bronca e castigo.
          Comia biscoito de morango, usava brilho de morango, tomava pick nick de morango e achava morango a fruta mais especial do mundo. Mas um dia constatei: - Mãe, eu nunca ví um morango de verdade. Cheguei a pedir que a minha avó plantasse em seu quintal-que-dava-tudo, mas ela dizia: -ora menina, deixe de ser 'desasuntada'.
           Um dia, lá estava eu, no auge dos meus 7 anos, talvez. Era uma tarde tediosa, em que eu assistia um filme na globo (provavelmente "A lagoa azul", "Curtindo a vida adoidado" ou "Lessie"), e então, sinto duas mãos macias taparem os meus olhos e a voz de minha mãe mais espevitada que o normal disse: - adivinha o que eu trouxe pra você? Em seguida, me fez apalpar, de olhos fechados uma frutinha maior que seriguela e menor que uma maçã. Eu, num salto nem pestanejei: é "morango"!
          Ao abrir os olhos, fiquei alguns minutos admirando a tal fruta. Minha mãe fizera questão de escolher uma fruta de cor e formato idênticos aos que passavam na televisão ou estampavam as embalagens de biscoito. Era um morango perfeito, vermelhinho, com folhinha verde. Eu cheirei, olhei e subitamente fui acometida de um pequeno receio: e se o morango de verdade não for tão gostoso quanto o do brilho, do biscoito e do geladinho?
         Nesse momento, tive os pensamentos interrompidos por minha mãe, que ansiosa me apressou: - ande, prove logo! E aí o medo aumentou. Não fazia muito tempo que minha querida e amada mãezinha havia me induzido a tomar de uma só vez um copo cheio de "emulsão de scott" (um composto de vitaminas e óleo de fígado de bacalhau bem tradicional, que os pais dão pra criancinhas que consideram magras) dizendo ser "vitamina de banana, mas com gosto de framboesa".

(continua no próximo post)

4 comentários:

  1. Que infanto-traminha mais gostoso, cheiroso e macio. É como a sensação de tomar o banho das cinco, depois de ter passado o dia se sujando na brincadeira. E depois ir para a janela enquanto a mãe desembaraça o cabelo.

    ResponderExcluir
  2. Minha mãe plantou uma mudazinha em um velho cuscuzeiro que humildemente fez-se caqueiro quando eu tinha uns quatro anos e moranguinhos eu tinha todos os dias pela manhã, eles nasciam e de verdinhos ficavam bem vermelhos e eu sempre ansiosa para comê-los. Para mim a frutinha parecia um coração, que nobreza...

    ResponderExcluir
  3. Tá lindo o texto. Me faz relembrar sentimentos bons de minha infância, repleto de cores, sabores e ingenuidades infantis. Era lendo e psicologicamente sentindo uma brisa boa de fim de tarde, aquelas que você esta numa situação ideal pra propaganda de OMO e senta-se para descansar embaixo de uma árvore. ^^

    ResponderExcluir
  4. queri ver o resto da historia....

    =/

    ResponderExcluir

diga aí

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...