"Há alguns dias, Deus - ou isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus -, enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor. Ou disso que chamamos, também com descuido e alguma pressa, de amor. E você sabe a que me refiro. Antes que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer ou não querer - eu já estava lá dentro. E estar dentro daquilo era bom"
"Não conseguia compreender como conseguira penetrar naquilo sem ter consciência e sem o menor policiamento: logo eu que confiava nos meus processos, que dizia sempre saber de tudo quanto fazia ou dizia. A vida era lenta e eu podia comandá-la. Essa crença fácil tinha me alimentado até o momento em que, deitado ali, no meio da manhã sem sol, olhos fixos no teto claro, suportava um cigarro na mão direita e uma ausência na mão esquerda."
Na hora é insuportável. Um peito cheio de dores que explodem sem harmonia. A cabeça gira, os olhos mal podem enxergar um palmo a frente, posto que as lágrimas deslizam deles a lavar a face. O estômago roda: como digerir tantas mudanças impostas em segundos?
"Mas se eu tivesse ficado, teria sido diferente? Melhor interromper o processo em meio: quando se conhece o fim, quando se sabe que doerá muito mais -por que ir em frente? Não há sentido: melhor escapar deixando uma lembrança qualquer, lenço esquecido numa gaveta, camisa jogada na cadeira, uma fotografia –qualquer coisa que depois de muito tempo a gente possa olhar e sorrir, mesmo sem saber por quê. Melhor do que não sobrar nada, e que esse nada seja áspero como um tempo perdido."
O primeiro dia é sempre mais difícil. O abrir de olhos mais cedo que o comum e a estranheza ao lembrar que acordei outra. Hoje e daqui para a frente, não serei a que receberá uma mensagem amorosa nas primeiras horas do dia, nem as ligações de "posso ir aí só para te dar um beijo?". Não serei a que deseja que o dia passe logo só pra ganhar um chamego ao anoitecer. Não mais serei a que faz planos a dois: a que programa viagens, passeios ou idas ao sushi.
"Durante todo o tempo em que pensei, sabia apenas que você vinha todas as tardes, antes. Era tão natural você vir que eu nem sequer esperava ou construía pequenas surpresas para te receber. Não construía nada - sabia o tempo todo disso -, assim como sabia que você vinha completamente em branco para qualquer palavra que fosse dita ou qualquer ato que fosse feito. E muitas vezes, nada era dito ou feito, e nós não nos frustrávamos porque não esperávamos mesmo, realmente, nada. Disso eu sabia o tempo todo."
Vem um nó na garganta e como que para oficializar o meu novo velho "eu", amanheço benta em lágrimas. A natureza se compadece: lá fora está o maior temporal. E eu sou só chuva.
O segundo dia é menos ruim. A gente começa a ver que "se não há amor, ainda existem os caminhos". Como num passe de mágica começamos a enxergar o amor que nos foi negado em todas as outras coisas. Família, amigos: todos transbordando em mimos e cuidados típicos de quem ama.
E aí nos damos conta de que não existe buraco. De que podemos ser quem éramos sem perdas. Não seriam as decepções uma espécie de ganho?
"...porque já não temos mais idade para, dramaticamente, usarmos palavras grandiloqüentes como "sempre" ou "nunca". Ninguém sabe como, mas aos poucos fomos aprendendo sobre a continuidade da vida, das pessoas e das coisas. Já não tentamos o suicidio nem cometemos gestos tresloucados. Alguns, sim - nós, não. Contidamente, continuamos. E substituimos expressões fatais como "não resistirei" por outras mais mansas, como "sei que vai passar". Esse o nosso jeito de continuar, o mais eficiente e também o mais cômodo, porque não implica em decisões, apenas em paciência."
*Todos os itálicos são de autoria do escritor Caio Fernando Abreu.
Término de namoro?
ResponderExcluiro texto fala sobre término sim. mas nem sempre a carapuça dos meus textos me serve.
ResponderExcluir;)
Você disse bem:nem sempre.Porém,acredito[não sei porque] e esse em especial serviu de carapuça sim.
ResponderExcluirEstou assustada com você. Espantada mesmo. Pensei que conhecesse a pedra-de-toque de seu Phd em percepção emocional. Mas me equivoquei, tanto quanto me surpreendi.
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