Um texto pra minha cápsula do tempo

aos 3.

Se a morte for descanso, prefiro viver cansada - entoou minha avó enquanto limpava a mesa suja de almoço. Ela já passou dos 70. Pariu, criou e educou oito filhos e ainda assim morre de medo da morte. Prefere capengar refém do cansaço eterno. Meu pai é do mesmo jeito. Trata-se de um senhor que beira os setenta e, mesmo com um infarto no currículo, anuncia aos quatro ventos que pretende chegar aos cem. Espreita cabisbaixo e temeroso a morte dos amigos próximos, que teimam em embarcar em fileira, ano após ano, deixando a rotina do meu velho repleta de velórios e missas de sétimo dia.

Eu não. Prestes a fazer vinte e cinco, admito que a possibilidade de um dia estar sete palmos abaixo do chão nunca me tirou o sono. A vida, a mesma que é finita, secreta e cheia de altos e baixos - essa sim -, me deixa de cabelo em pé. Morro de medo. Deito no travesseiro à noite e os olhos arregalam: - Mas como é que vou fazer pra viver, meu Deus?

O peso dos dias me esmaga mais que a possibilidade da morte. Nasci assim: vendo tudo demais, vivendo tudo demais, querendo tudo demais. E dá um baita trabalho lidar com isso tudo. Ainda criança, gostava de criar "pontos de lembrança" que funcionavam assim: lembrava daquele dia, daquela hora e me auto-desafiava. Um dia, teria que voltar a pensar exatamente naquele momento. Era uma forma de tentar não perder o fio da meada, de tentar fazer do tempo algo visível. Eu tinha menos de sete anos. 

Um dia, muitos anos depois, lembrei que tinha esquecido. Eu já estava crescida, a infância já começava a se despedir. Notava os risinhos de canto de boca e as batidinhas nas costas quando eu, já dona de notórios peitinhos, trocava a fralda da boneca. Me perdi na contagem. E quando vi já era moça. Meu pai lamentava choroso na mesa da cozinha a minha menarca. Dizia: "mas ainda é uma menina". E eu pensava: pois é. 

A essa altura, já tinha desistido de fazer os meus nózinhos no tempo. Contentava-me com os.diários, onde tentei deixar o maior número de registros possível. Me dei conta de que já estava namorando. E quando comecei a namorar abri mão também dos diários. Aderi aos beijos. Me desencontrei de vez. 

Restava o nome na chamada do colégio pra lembrar que, apesar de tudo, ainda era a mesma "Lívia de Carvalho Ramos". Nome não tinha idade. Mas aí eu já era professora. Dava aula. As mesmas aulas que me haviam sido ditas há pouco. Ao menos ainda tinha os recreios na escola, rodeada dos queridos. Ops! 

Estava estudando direito. Já não morava na mesma casa, nem usava as mesmas roupas. E quando vi, já estava no terceiro apartamento e quarto namorado. A sensação era a de estar sendo empurrada pela vida enquanto o tempo me cobria os olhos. Mas o que era aquilo que as pessoas chamam de existência? Antes que pudesse achar uma resposta me vi sentada numa sala de aula completamente distinta.

Assistia o professor de "mídias". Cursava jornalismo. Agora era a moça mais velha com um diploma embaixo do braço. Sequer podia me camuflar. Inventei de falar, e o professor "matou" a charada na hora: é nordestina e já tem alguma graduação, acertei? "Notei que está entediada. Você já viu esse assunto, né?", perguntou em tom humilde. Mal sabia ele, que observar as lições que tive e que dei se repetirem naquele momento, tinha funcionado como um excelente "arremate" de tempo. Um marco no círculo que vivemos percorrendo.

E aí entendi o medo dos velhos: não é da morte. É da vida que passa atropelando tudo. É de chegarem naquele ponto crucial em que tudo termina justamente porque voltou pro começo. Deve ser por isso que tenho medo de dormir. E é por isso que os idosos dormem menos. Entendi.

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