O céu de ícaro e o direito ao sonho

A lenda/história de Ícaro todo mundo conhece, mas permitam-me explicar: Trata-se da mitológica aventura de um ambicioso rapazinho rumo ao céu. Vivia isolado em uma ilha, coitado. Sua sorte é que o pai, Dédalo, um homem muito engenhoso, fabricou-lhe asas de cera para que pudesse atravessar o oceano e conquistar a sonhada liberdade. 

O problema é que o moço era teimoso. Empolgou-se em demasia com as asas e desobedeceu a única regra que lhe fora imposta: não voar alto demais, pois, caso o fizesse, suas asas inevitavelmente derreteriam com o calor do sol. Ganhar os céus sempre tem um preço. E o rapaz tentou "pular a catraca".

O final é trágico. Como se sabe, o sonho de se ver livre acabou afogado nas profundezas, junto com Ícaro. - E se a fuga tivesse acontecido durante a noite? me questiono. A lua seria menos cruel, por certo. A verdade é que até as fugas, esses atos de extrema coragem, precisam ser planejadas.

Há dois meses também tive asas. Asas de metal, de um desses aviões que circulam à preços mais em conta. Recortei os céus rumo ao desconhecido. Pra quem se sente prisioneiro, qualquer outro local soa mais atrativo do que a velha e conhecida solitária. E foi com esse sonho no bolso e mais alguns vinténs que resolvi trocar de pele - feito cobra - e mudar de vida.

Saí do interior e estou vivendo em São Paulo. Cheguei sã e salva. Voei segura, modesta, consciente de que começaria do zero, como todos os que não têm facilidades pré concebidas. Sabia que antes de me encontrar, circularia atônita pelo labirinto da cidade grande. A moça que andava a pé e de chinelos no interior, soube o que era dirigir o próprio carro - com todas as pompas - nos tempos de faculdade. Agora o aprendizado seria descer do salto e desbravar o metrô lotado: aquele mesmo que você vê nos jornais. 

Livrei-me, primeiramente, de todo o peso desnecessário - inclusive dos medos, raízes, correntes e todo o resto que me fixava à qualquer coisa. Deixei no antigo armário a maioria das roupas e sapatos altos. A caixinha de maquiagem restou repleta, solitária em minha bancada. Doei muitas das coisas que já não me serviam - e algumas que serviam também. Abdicar é abrir mão não só do que seria descartado sem dó, mas daquilo que faz a gente se sentir incompleta. 

Nessas horas a gente entende o quão sobrecarregados vivemos. Mesmo o que dói deixar, depois já não faz falta. Revelo que me perdoei, finalmente, por não ter lido alguns livros. Ficaram de castigo na estante, por não caberem na mala. A parte da nossa auto-absolvição é também de extrema importância. Não adianta decidir dar uma reviravolta dessas se a gente resolve carregar as culpas no bolsinho lateral da mala. 

Vivo na terra em que "filho chora e mãe não vê", como dizem. E é a mais pura verdade. O segredo é providenciar um travesseiro bem gordo e acolhedor. Lágrima de moça crescida não é da conta de mãe. Quem nos criou e aparelhou para o mundo, merece, no mínimo, assistir confortável da arquibancada. Os beijinhos nos dodóis do corpo e da alma já não fariam efeito, embora tenham abastecido o nosso reservatório de amor e carinho de forma renovável.

Chega o tempo de andarmos com as próprias pernas, comermos com as próprias mãos e tomarmos o nosso próprio banho: lembrando de lavar bem todas as partes. Assim sendo, depois da maioridade (a emocional, lembram?) já estamos aptos à fazer nossos próprios curativos e escolhas. Os que amamos já não estão em posição de salvadores da pátria: são os que queremos orgulhar e agradecer ao invés de culpar ou ocupar. É o merecido descanso, a ordem natural das coisas.

Isso não quer dizer, confesso, que eu não possa telefonar saudosa e chorona numa tarde qualquer. Ainda não inventaram nada melhor que colo de mãe pros momentos de fraqueza. E minhas asinhas ainda estão em fase de adaptação. Mal sei traçar a rota do vôo.

Certa vez, li um texto de Eliane Brum: "Meu filho, você não merece nada" (leitura obrigatória!). Em resumo, a crônica defende que não temos nada garantido mesmo que tenhamos sido amados, bem educados e preparados - em tese - para a vida e para o mercado de trabalho. De fato, não merecemos. Mas nada impede que façamos, o quanto antes, a nossa parte.

Alguns dirão que tenho razão. Outros, que essa história de chutar o pau da barraca é mais um devaneio da minha mente complicada. Corro o risco de acabar como o pobre Ícaro, eu sei. É o preço da ousadia. Mas sabe de uma coisa? ninguém me tira essa vontade louca de seguir os meus instintos. Sejam eles delírios, ou não. 

Recém tatuada :)

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