Morra de saudade, matá-la é crueldade


RICORDATI DI ME OU NÃO

“Saudade é dor de distância”, disse-me um dia um amigo e nunca pude esquecer. Outros conceitos possíveis podem ser elaborados sobre esse singelo e nobre sentimento. A saudade permanecerá única, ímpar. Sentimos saudade, saudade se sente. O sentir é sua instância de comprovação. Não dá pra pôr na balança. “Quanto pesa a falta de minha infância?”. “Quanto tempo eu aguento sem vê-lo?”. Não é mensurável, não há peso nem medida. Saudade talvez seja o paradoxo de sentir o vazio. “Tudo agora é o acúmulo da sua ausência”, escrevi numa carta um dia. “Ricordati di me”, respondeu o destinatário. Vê? Saudade é poesia pura! Esse poético sentimento pode não caber em si, pode não caber em um conceito hermético. Mas, é sem dúvida o maior inspirador da métrica em prosa e em poesia, e do tempo certo no compasso da canção. “Saudade, o meu remédio é cantar”, sentenciou o Gonzagão. Quando saudoso, faço uso abusivo do medicamento.

Como sofro de modo exponencial pela busca do primeiro nó, fui buscar a etimologia da palavra saudade. Do latim sempre presente: “solitas”, que quer dizer solidão. Em outras línguas busquei tradução, todas baseadas em sentimentos de falta, perda, lembrança, distância, anseio e memória. Diante de tanta solidão, fiquei melancólico. Como souvenir de minha viagem saudosista, trouxe do alemão uma palavra nada delicada, nem de longe bucólica: sehnsucht. Imaginei pronunciar-se algo próximo de “sem chutes”. Ri sozinho. Vejo tanta gente chutada mesmo assim sentir saudade. A pronúncia real, algo como “zenzort”, remeteu-me a “sem sorte”. Discordei do meu modo de traduzir. Sortudos são os que sentem saudade, porque viveram algo especial, ao menos no próprio julgamento.

Saudade é lembrança que acompanha. Para muitos, sinônimo de dor - somente. Eu costumo dizer que demoro sentir saudade, alguns amigos se assustam.  Se for saudade dolorida então, essa eu quase não sinto. Se chorar de saudade, como já chorei, choro de desejo. Vontade de estar perto. Senti-la aproxima, penso. Dizem que nós brasileiros somos um dos poucos povos que nomeamos especialmente e tão vastamente esse sentimento, dizem que é um sentimento latino. Não, não é. Talvez nosso gosto pela saudade seja maior. Dia após dia, ela parece brotar mais facilmente entre nós. Cresce proporcional à solidão que nos aplaca. Como não cresceriam juntas? São sinônimas, siamesas até. O Renato Russo muito antes já acertava, “O mal do século é a solidão. Cada um de nós imerso em sua própria arrogância, esperando por um pouco de afeição”. E haja desafetos e haja arrogância. Vai ver por isso nos sentimos tão sós.

Sintomaticamente, a mesma saudade que faz doer é a que faz sorrir. Em geral demora pular da dor para o riso, mas é um treino possível. Não poder matar a saudade dói. Quando a lembrança é tudo que temos, doces instantes devem ser visitados. Como assim matar a saudade? Eu particularmente desejo mantê-la bem viva. Deixar a saudade viver é uma concessão que o nosso desejo homicida deve sempre ponderar. Morra de saudade, matá-la é crueldade.

“Ah, tempo bom que não volta atrás”. A saudade e o tempo são partes de uma mesma ampulheta. Nosso coração é essa ampulheta. A estreita cintura registra o tempo que passa. Aquela areia fina é a vida em si. O tempo deixa a vida passar, o átrio da saudade aguarda ser preenchido. Quem vive sente saudade, quanto mais se vive mais se sente. Desejamos sempre muita areia pra jorrar. Infelizmente, o tempo não regressa. A rua da infância não é a mesma na vida adulta, os amigos podem não ser os mesmos também, a casa da vovó já não é espaço para suas corridas de velotrol, o primeiro beijo de língua com muita língua te provocou enjoo... E tudo isso ainda é seu!

Agora, quanto de saudade cabe em nós? Toda lembrança é saudade? Algumas coisas é melhor esquecer mesmo lembrando. Lembrar-se de esquecer é sempre bom. Acho que é bem isso que minha mãe costuma chamar de “saudade aliviada”. “Estou com uma saudade aliviada de Beltrano!”, diz ela. O que quer dizer: lembro-me dele e o quero bem longe. Confesse! Essa saudade você também já sentiu. Eu sinto com orgulho. Sabe aquele destinatário lá de cima?
Ricordo sempre, com bastante alívio.









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Olá! Eu sou o Raphael, conhecido por alguns como PH. Gosto desse apelido! Sou Comunicólogo pela Estadual da Bahia, sou bebum de fim de semana pela vida e pelas más companhias, sou aficionado em música brasileira e romance português. Adoro a vida alheia - daí eu gostar de escrever. Fã número 1 da Legião Urbana! Eterno moleque.

4 comentários:

  1. O que me prende, o que me hipnotiza é a pureza do parágrafo em que você faz suposições divertidas sobre a etimologia da palavra 'saudade'. Ao mesmo tempo que percebemos sua intenção em levar o texto à frente, vemos você sentando e, sem pretensões calculadas, nos convidando a divagar sobre o vocábulo.
    Um texto alinhado ao sentimento (desperta-o, remete a), à Psicologia, à Literatura (uso das figuras de linguagem) e bem formatado para vários meios.
    Muito orgulhoso de você, amigo.
    Saudade ou saudades? Por que usamos no singular, às vezes no plural? Senti falta desta indagação. Com certeza, você mergulharia em outros meandros sentimentais que velamos sem saber.
    Amo lê-los. Até a próxima.

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    1. Tiago, essa minha intenção desatenta é o que tenho de melhor. rs! Você sabe disso. Eu particularmente prefiro a saudade singular. Parece-me mais sincera. Não duvido que é possível sentir mais de uma, mas uma por vez implica maior dedicação. Essa nossa saudade plural, sentida de forma singular, diz de nós tanto quanto cala. Mergulhar na saudade foi brincar de temperar chocolates, do quente ao frio repentino a gente catalisa a cristalização. Lapidemos os nossos sentimentos! Foi um prazer contar com sua leitura atenta. Apareça antes que a distância passe a doer!
      Até a próxima.

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  2. Olá amigo, como não podia de deixar de ser, adorei o seu texto. A sua textualidade despretensiosa, enfim. Poucos são capazes disso.
    Eu só queria dizer que suas palavras tocaram-me profundamente, perpassarem o meu ser e o meu sentir. Saudade(s), singular ou plural na sua intensidade, como lembrou-nos o amigo Tiago Crateús, é algo que me move a percorrer distâncias imensuráveis à procura do outro, ou simplesmente de mim mesmo. Saudoso é o meu coração, que pulsa em frenesi ao relembrar momentos reais ou imaginários, vividos ou desejados. Obrigado por me fazer voltar atrás, às vezes é preciso. Turn around.
    Abraço saudoso, mon ami. E continue não estudando...

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    1. Tito, Pode deixar que se depender de mim não vou estudar tão cedo. Fico satisfeito em saber que o texto lhe bagunçou os sentidos. Querendo perder-se ou achar-se, vez ou outra estarei aqui. Tem ainda o meu endereço físico, você é sempre um grato convidado. Um grande abraço saudoso, retribuído com sal e "lágrimas de Portugal".
      Abraçaço!!!

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