Salvador: a realidade.




Falar de preconceito racial e luta de classes é aparentemente fácil. Basta remontar as raízes históricas escravocratas do nosso Brasil, ressaltando os muitos anos posteriores de "escanteio" dos antes escravos,  em que o único ganho era a ausência de correntes de ferro presas aos calcanhares. Mas não nos iludamos com bondade, apenas: era preciso gente livre, para trabalhar nas cidades e ganhar o mínimo possível para a garantia do bom funcionamento da máquina consumerista. 

O fato é que em tempos de avanços científicos, tecnológicos e educacionais, eis que passo a enxergar Salvador através de outras cruéis lentes. Vou à praia, com meus óculos escuros, contemplar a grandiosidade daquele mar lindo e convidativo. Mas alguma coisa não soa bem, algo não orna na paisagem. Na sala de aula, olho ao redor e tudo parece estar em conformidade, entretanto, novamente sinto estranhamento. E a sensação se repete nos melhores shoppings, nos prédios de luxo e nos lugares mais bonitos e limpos. 

Demoro a perceber e admitir, mas encontro a resposta: Não vejo negros - pelo menos nos lugares que mais frequento - na cidade com o maior número deles depois do continente africano. Passo a procura-los com mais atenção: observo a sala, e vejo um único negro sentado em meio a 200 alunos brancos. Aproveito o vazio dos corredores e desço as escadas, na hora da aula, percorrendo os corredores em busca de vestígios, e imediatamente entendo a dinâmica: os negros estão lá, e são vários: os faxineiros, recepcionistas e funcionários subalternos do prédio. Incomodada, saio e vou me infiltrando nas ruas com olhos ansiosos e observadores: lá estavam eles, apinhados nos pontos de ônibus, varrendo a rua e até deitados em pedaços de papelão à margem dos grandes prédios.  



O apartheid não acabou e é aqui. A barreira invisível de classes mantém os negros ocupando favelas, as novas senzalas. São miseráveis quilombolas as que lavam o nosso chão, penteiam os nossos cabelos e  fazem as nossas unhas como as antigas mucamas. Outros, vendem carregador de celular ching ling na passarela, ou fitinhas do "Senhor do Bonfim" no pelourinho. Ainda são os negros a vigiar, cuidar e guardar as nossas propriedades, os nossos carros. Ainda são eles, os que mais sofrem. 

A realidade é clara: os brancos mais favorecidos e os pretos não se misturam de verdade. Enquanto minhas colegas de sala desfilam suas bolsas compradas em Paris, seus Iphones, estojos coloridos com mil canetas caras e coloridas e grifes do sapato até a blusa,  reparo no moço tímido , que entra na sala sempre que a aula termina, trajando vestes azuis e tristes, para apagar o quadro. Mas ninguém enxerga. O homem mal fala, mal olha, mal pode ser visto: acostumou-se a ser invisível pra toda aquela gente. Encara com certo susto um bom dia. Está habituado a seguir fitando o chão, cansado depois de ter descido ladeiras e tomado 2 ônibus lotados e ter que sempre entrar pelo elevador de serviço, o mesmo destinado ao lixo e às coisas que incomodam os donos do pedaço.

O que mais me revolta, é que uma interiorana como eu tenha escrito esse texto. E que a maioria dos mauricinhos e patricinhas da classe média alta, que pagaram R$ 1.200,00 em média para estudar nos melhores colégios não tenham atentado para o problema. Olho para o lado, e vejo uma colega sorrindo e conversando com a outra, enquanto o professor fala da bomba atômica que atingiu Hiroshima dizimando cerca de 120 mil pessoas e entendo a lógica: o segredo é ficar de fora, alheio, fingindo que não é com você.  O segredo é não sentir a dor do outro. E me pego sentindo vergonha de deixar cair uma lágrima, mesmo prendendo durante toda aquela apresentação de slides com fotos da destruição. Que importa se negros, japoneses ou o escambau também são humanos? "Não disparei nenhuma bomba, não fui eu quem trouxe os negros enjaulados da África". E dormem com as consciências tranquilas, em seus travesseirinhos de látex da NASA.

Será que só eu sinto aquela dor? será que só eu deixo escapar uma lágrima de vez em quando diante de toda miséria e injustiça que a humanidade é capaz de causar por pura manutenção de poder? Enxugo os olhos, me sentindo uma extraterrestre, enquanto os 200 alunos copiam a aula ávida e mecanicamente, para não perder uma linha de informação. Saio sem graça, "descabriada" e tristonha. Sinto grande pesar: Todos ali sabiam de cór  as fórmulas físicas, os fenômenos geográficos, desgraças da humanidade e regras gramaticais, mas falta consciência. Voltarão para casa, envoltos na cegueira confortável que é não enxergar o quadro barroco que está diante de suas narinas: claro contraste entre claro e escuro, riqueza e pobreza, opulência e descaso, pintado com esmero e organizado sorrateira ou inconscientemente pelos pais e por eles próprios. 

3 comentários:

  1. Haiti (Caetano Veloso)

    Quando você for convidado pra subir no adro
    Da fundação casa de Jorge Amado
    Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos
    Dando porrada na nuca de malandros pretos
    De ladrões mulatos e outros quase brancos
    Tratados como pretos
    Só pra mostrar aos outros quase pretos
    (E são quase todos pretos)
    E aos quase brancos pobres como pretos
    Como é que pretos, pobres e mulatos
    E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados
    E não importa se os olhos do mundo inteiro
    Possam estar por um momento voltados para o largo
    Onde os escravos eram castigados
    E hoje um batuque um batuque
    Com a pureza de meninos uniformizados de escola secundária
    Em dia de parada
    E a grandeza épica de um povo em formação
    Nos atrai, nos deslumbra e estimula
    Não importa nada:
    Nem o traço do sobrado
    Nem a lente do fantástico,
    Nem o disco de Paul Simon
    Ninguém, ninguém é cidadão
    Se você for a festa do pelô, e se você não for
    Pense no Haiti, reze pelo Haiti
    O Haiti é aqui
    O Haiti não é aqui
    E na TV se você vir um deputado em pânico mal dissimulado
    Diante de qualquer, mas qualquer mesmo, qualquer, qualquer
    Plano de educação que pareça fácil
    Que pareça fácil e rápido
    E vá representar uma ameaça de democratização
    Do ensino do primeiro grau
    E se esse mesmo deputado defender a adoção da pena capital
    E o venerável cardeal disser que vê tanto espírito no feto
    E nenhum no marginal
    E se, ao furar o sinal, o velho sinal vermelho habitual
    Notar um homem mijando na esquina da rua sobre um saco
    Brilhante de lixo do Leblon
    E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo
    Diante da chacina
    111 presos indefesos, mas presos são quase todos pretos
    Ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres
    E pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos
    E quando você for dar uma volta no Caribe
    E quando for trepar sem camisinha
    E apresentar sua participação inteligente no bloqueio a Cuba
    Pense no Haiti, reze pelo Haiti
    O Haiti é aqui
    O Haiti não é aqui

    Sem mais...excelente texto!

    Te Amooo :)

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  2. Sua música de Caetano fechou com chave de ouro tudo o que eu queria dizer! obrigada pela super contribuição!

    Te amo, amigo!

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  3. 'Liu', estava com saudade dos seus textos. Apareça mais... hehe. Bj! Adorei.

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