Devaneios, saudosismo e noites mal dormidas.

         Mal podia soerguer as pálpebras trêmulas àquela manhã. Os fios de luz que penetravam a parede azul causavam dúvida ao se misturarem com os lençóis brancos e rendados: estaria no céu? Não fosse a renitente dor de cabeça pensaria habitar qualquer lugar, menos o artificialmente gélido quarto. Foi então que percebendo cada membro, fui alvo de uma quase paraplegia imaginária e arrastei-me como se pesasse 90 kgs até estar  sentada, com as costas devidamente alcochoadas no travesseiro de consistência análoga à de um pedaço de algodão doce: daqueles, que os médicos não recomendam e naquelas posições estonteantemente erradas, de tirar o sono de qualquer fisioterapeuta.

        Queria abstrair todo aquele dia que estava por vir. Dormir novamente, acordar e pensar: ah-rá! bom 2010 pra mim. Sabia que o outro ano iria ser bom, mesmo sabendo, que na verdade, assim como as chuvas na zona de convergência no pacífico sul, àquela previsão poderia falhar. Mas seria bom, reforçava pra mim mesma todos os minutos, acreditando na técnica da repetição como desencadeadora de diversos desejos. Queria dar um basta na lei de Murphy, que há 365 dias, de uma forma ou de outra regia minha vida total e absoluta, sem controles de constitucionalidade, emendas, ou coisa parecida. Para uns, maré de azar, para outros destino. Vida, e suas consequências naturais, pros mais sensatos, era o que acontecia.

        Estava na corda bamba. Como uma equilibrista de pratos decadente, com o solado gasto em cordas ainda fortes. Ia descartando os pratos, de um a um, na esperança de reduzir o trabalho. Outros, deixava cair por mero descuido. Mas uma coisa era fato: a platéia, já cansada, deixava em rítimo vertiginoso as cadeiras metálicas da arquibancada. Silêncio, solidão e dificuldade. As roupas puíam e a gravidade não dava folga: sempre tratando de atrair tudo pra baixo. Inclusive os pratos, inclusive as roupas, inclusive a mim. Que seria da pobre equilibrista no palco? Não sabia das suas habilidades. Palhaça, pensou. E teve certeza de que não precisaria sequer entreabrir os lábios para arrancar risos descontraídos. Tornara-se aquela figura: exagerada, excessivamente maquiada e sem noção.

       Queria bis. Não da platéia: isso tinha ficado esquecido. Queria mais chocolate. Uma caixinha inteira, se desse. Ia tirando um a um da embalagem, tirando o papel da forma mais ágil possível, já subindo em direção à boca. Dobrava os papéiszinhos, um a um, naquele tom de azul escuro e brilhante, que lembrava bolas de natal. Geralmente eram douradas, vermelhas ou verdes, as bolas. Mas eu gostava muito das azúis. Azul era de longe, a cor preferida. Azul e branco: as cores do céu. E coincidentemente, o meu primeiro aniversário teve como tema ' Uma festa no céu ' - nada de Mônica, moranguinho, Cinderela ou coisa parecida -, uma festa no céu!, minha mãe batia o pé, mesmo com todos cientificando-a da preferência das mães de meninos por aquela temática nada cor-de-rosa.

         Não deu outra: anjos, estrelas penduradas e todo o teto forrado de azul. Casas feitas com biscoitos e balas, ao estilo João e Maria, decoravam as mesas e faziam a alegria da garotada. Menos a minha, que impaciente, clamava por um pouco de paz. Onde estava a celestialidade em toda aquela gritaria? eu deveria estar pensando. Minha mãe conta, que tive um surto, e comecei a morder os convidados que se aproximavam. Não eram lá grandes mordidas, mas as mais fortes que eu podia dar com os meus quatro dentinhos. Mesmo assim, foi a festa mais linda que eu já vi. Com as músicas mais lindas que poderiam existir em um aniversário de criança.

         Vinte anos depois, ainda carregava traços daquela festa: A preferência inexplicável pelo azul e pelos meninos. Aquela vontade de paz, que poderia ser obtida mordendo quem quer que se aproximasse pra perturba-la. A música, que até hoje faz com que os olhos marejem.

          E vem a vontade de sentir o cheiro da madeira  e ouvir o assoalho da sala a ranger. Como podia odiar os sofás de veludo e a madeira? Todo o galmour decadente, do chão de mármore do banheiro e porcelanas chinesas, já desgastados pelo tempo tinham se transformado em saudade. A cama rosa -que agora é branca-, com flores entalhadas na cabeceira, era tão linda. A minha penteadeira - herdada das tias, como todo o restante do quarto- datada do final dos anos 70, o guarda-roupas, com os horários do ballet escritos na parte interna das portas, pra não esquecer, e a janela, que dava pra parede do quintal, onde eu mesma media a minha altura, com tracinhos cada vez mais altos, ficaram no passado. Agora, mudo de casa quase todos os anos. E sinto que permanecerei mudando e mudando. Até me aquietar em um lugar, em alguém. Até ser forte, até ter norte. Sorte.

2 comentários:

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  2. que coisa essa a itinerância, e até um pouco a ciganiçe dessa menina. Queremos também brindar a mobilidade com caixas de chocolate. E verificarmos, no espelho da penteadeira, se restou algum vestígio da orverdose chocolística por entre os dentes.
    Vamos permitir e revolucionar.

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