Palavrassoltas


               ‘Todos os prazeres são orais’, lembrei. E fitei novamente aqueles olhos azuis. Desejei por alguns segundos os possuir. Me lembravam céu, água e tranqüilidade. Diferente dos meus, que mais pareciam bolas em tom terroso, que nos momentos de otimismo, me lembravam cor de mel  - passado da validade -. Eu e a minha mania de querer tudo. Nem os olhos da pobre psicóloga, se livraram do instinto predatório. Foco, Lívia, foco. Precisava entrar em meditação por alguns instantes. Deixar de ser e fazer, para ruminar ideia por ideia até a exaustão.
Em 1 segundo, me tornei ‘1/3 do que era. Estava eu, naquela regressão escabrosa, em busca de vestígios da tal fome de tudo, que a doutora diagnosticara. Tinha três anos recém completos. Revistava insistentemente todos os cantos da casa em busca do principal alvo: mãe. A babá, displicente que era, se divertia com o meu caminhar descompassado. No fundo, me fazia de brinquedo naquela tarde quente. Lembro claramente do copinho de alumínio em que rapidamente bebi alguns goles d’água. Lancei-o sobre a pia com toda a força que aqueles bracinhos poderiam aplicar em sinal de protesto. Queria minha mãe a todo o custo.
Choros, velas e caixão. Meu avô, naquela hora havia perdido a batalha contra a morte. Suas piadas – feitas em pleno leito hospitalar – pareciam começar a  concretizar-se. – Vou, mas volto para buscar Livinha, brincava, para o desespero da minha mãe.  Chorosa, tentava persuadi-lo a levar algum dos filhos da irmã – Talvez de tia Sônia, que tinha dois e mais um na barriga -. – não leve a minha filha única, painho!, implorava. Mas ele arriscava um riso, encoberto por tubos e ficava ofegante. Como era brincalhão, o meu avô.
O caso, é que não agüentei aquela ausência. Comecei a correr pelo quintal. Estava decidida: iria chamar atenção. Nem imaginava onde minha mãe estaria, mas achava que a moça pudesse ter uma espécie de radar para as minhas traquinagens. Eis que a sandalinha de couro branco, meio úmida do xixi da manhã que eu insistira em fazer em pé, escorrega, e faz com que eu vá sem escalas encontrar – de testa – o chão desnivelado do quintal. Ardores, choros, colos e promessas de encontrar um coelhinho não sei onde. Lembro disso,  e dos médicos costurando algo que doía levemente.
Agora, crescera alguns centímetros. Centímetros esses, que aliados a um corpo longilíneo renderam na escola o apelido de Olívia palito.  Queria ser modelo. Queria ser cantora. Sonhava em participar do arquivo confidencial do Faustão – é só uma questão de tempo - , previa. Queria ser médica, professora e vendedora de acarajé nas horas vagas (achava o máximo aquela roupa de baiana e aquela alquimia colorida de ingredientes). Queria namorar os mais bonitos do colégio, ouvindo Sandy e Júnior.
Anos a mais e hormônios descompensados. Irrompiam no rosto corpos estranhos. Pústulas, comendões e óleo em excesso. Os dentes, pareciam conspirar contra o sorriso. Os planos iam aos poucos por água a baixo. Piano, ballet, Taekwondo, natação, Inglês, informática, Jazz, aeróbica, ciclismo. Tentei ocupar o meu tempo. Precisava re-descobrir os meus gostos tão dispersos na fase aborrecente. Tinha sede desse encontro. Entre o idealizado e o real. Queria, e piamente acreditava que teria um ‘happy end Cinderelesco’ a qualquer instante.
Aos 15 anos, começava a lamentar o tempo perdido. Cinco anos insistindo no piano, e nada. Nem mesmo um clássico. Tinha gastado tempo, dinheiro, e aprendido nada mais que uma valsinha infantil intitulada ‘ a formiguinha ‘. Uma vida inteira no Inglês, e mal conseguia entender um texto mais complicado – Era pra estar fluente! – minha mãe jogava na cara. Na verdade, mais minha consciência do que ela. A auto-cobrança, de fato tinha sido a minha maior inimiga. Tinha aprendido a reagir de uma maneira anômala à ela. Ao invés de perfeccionismo, desenvolvi uns sintomas autistas, que faziam com que eu levasse as coisas como se nada quisesse.
Quis tudo, todo o tempo. Não virei pianista, bailarina, lutadora ou coisa parecida. Não conquistei os meus amores platônicos. O que veio, foi o inesperado. E as pessoas ainda insistem em me falar de metas. Não sei traçar metas. Pra mim, representaram não mais que perda de tempo. O que não foi perda de tempo,foi o sonho. Abstratos e coloridos, os devaneios não necessitam no seu plano de existência do pressuposto ‘tornar-se realidade’. Talvez sejam a dose de conto de fadas de que preciso. O inalcançável excita. Gosto do querer ter, mas não gosto do ter muito. Me sinto meio vazia e sem vida quando tenho demais. Vai que os sonhos acabam e a minha existência deixa de fazer sentido?   Queria um final legal pra esse texto, na verdade. Eu e minha mania de querer tudo.

5 comentários:

  1. você cada vez mais foda. nada mais a declarar: tenho dito.

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  3. e sim, dei valor ao "leio e lamento" da enquete, brow (Y)

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  4. Lívia,

    acho que você ganhou mais um leitor assíduo do seu blog.
    E eu, mais uma pessoa para culpar por me distrair e deixar as responsabilidades esperando.

    Hehe! Tudo tem seu ônus.

    Muito bacana este texto. Sempre achei engraçado o fato de não lembrar muito (ou nada) de quando era realmente pequeno.

    (Seu avô deve ter sido um cara bem legal)

    Ah, antes que eu esqueça. Peço sua ajuda para convencer Gabriela que Psicologia é importante. Seu texto mesmo descreve uma experiência baseada na Psicanálise (o método: “A cura pela fala”). Caso pense como eu, você pode contá-la os benefícios que tal ciência já lhe trouxe por meio de sua doutora. Eu sei que a mim já me fez bem.

    Mas seus argumentos, por virem de você, a ela talvez sejam mais contundentes.

    Rsrs! Eu queria...

    Ah! Essa mania de querer tudo.
    ;)

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  5. adorei o texto tita...

    identificado 100% com a minha realidade!

    beijos

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