Só por uma noite


O cara parecia perfeito. A julgar por suas roupas largas e barba por fazer era o tipo de moço bem "tô nem aí pra bobagens" que eu sempre apreciei. Além disso, o danado era dono de uma voz que arrancava suspiros de qualquer mulher. Cantava no Karaokê com o charme e desenvoltura de um desses astros do rock idolatrados mundialmente. Estava claro que era o tipo de talento fatalmente não descoberto. Na certa tratava-se de um rapaz comum, desses que tiveram uma pequena banda de garagem na adolescência e que depois precisaram recorrer a alguma dessas profissões mais palpáveis na área de informática ou vendas. 

Rafael arrancava assovios da platéia enquanto recitava sem esforço as letras mais emocionantes. Fechava os olhos e empunhava o microfone com as duas mãos, alternando graves, agudos e aqueles truques sexy's de saber respirar na hora certa. Me corrijam se estiver errada, mas qual é a menina que não se derrete por músicos? Faço parte dessa grossa parcela - se é que a uma altura dessas ainda preciso admitir o que já está pra lá de gritante. 

Pois bem. Senti vontade de mandar um recado... com certeza a garçonete me quebraria esse galho. Mas o que diria? "- Oi, moço-roqueiro-lindo-e-maravilhoso, sou essa patricinha de vestido azul klein, sapato Valentino inspired e luzes no cabelo recém oxigenadas da mesa 51. Acho que temos tudo a ver.". Melhor não, ein? - pensei. 

Resolvi, por conseguinte, enviar um pedido bem impessoal: "- Black, de Pearl Jam. Canta?". Não me identifiquei de forma alguma. Sequer dei uma dica. O rapaz olhava ao redor discretamente, mas a moça de tricot e jeans da mesa ao lado fazia muito mais o perfil de alguém que amava Edie Veder (o vocalista da banda) do que eu. Jamais seria descoberta. Minha aparência dissonante era a perfeita carapuça. 

As vezes, pra ser real, uma paixão precisa abrir mão de sua existência no mundo dos fatos. Assim sendo, preferi admira-lo de longe e dei piruetas internas quando o vi subindo as escadinhas do palco após a DJ anunciar a minha música. Não é que o ilustre desconhecido atendeu ao meu pedido? Cantei freneticamente - com direito a fechar os olhos nas partes preferidas e tudo. Era o meu Rafael entoando justamente a canção que dizia "I know someday you'll have a beautiful life". 

A aliança dourada brilhava no dedo anelar esquerdo. Mas nada seria capaz de macular o meu delicioso amor platônico aquela noite. Em poucas horas me imaginei vendo os shows de sua banda amadora com direito a beijos de novela no final. No outro instante, minha mente me transportava para o apartamento do cara - no centro de São Paulo, provavelmente. Eu andava descalça pelo assoalho vestida numa camisa de botões: numa mão, um livro, na outra, uma caneca de café recém passado. Podia avista-lo por trás dos meus óculos de armação preta: era o meu mais novo amado, arrumando sua coleção de discos. A sensação de paz era indescritível. 

Nós morávamos juntos e tínhamos um gato rechonchudo e preguiçoso. Ele fazia o almoço aos domingos e aos sábados saíamos para beber com amigos. De vez em quando cantávamos num desses bares de karaokê. Tínhamos umas três músicas já ensaiadas e o resto ficava por conta da incomparável sintonia. Nosso dueto era sempre um sucesso - principalmente aos desavisados. 

Já estava alta. Pelo tardar da hora eu e os meus amigos já deveríamos estar em casa. Pedimos a conta. Numa última olhada, vi o rapaz dos sonhos bebendo solitário. Pensei - uma última vez - em agradece-lo pela música e pelos milhares de delírios que tinha me proporcionado naquela noite cinzenta. Diria que os meus 25 anos foram abrilhantados por sua despretensiosa presença. Mas não. Melhor não. O cara era casado e, mesmo que não fosse, talvez eu não quisesse desmanchar o meu castelinho de areia.

Vai que tinha bafo ou não lavava os cabelos? Ou que votava no PSDB. Ou que gostava de guardar um revólver calibre 38 no fundo da gaveta de cuecas. O jeito comportado e escancaradamente fiel - mesmo em meio a milhares de mulheres solteiras - me chamava ainda mais atenção. Talvez estivesse apenas querendo pensar na vida. Talvez a esposa estivesse viajando, ou doente, ou sei lá. Talvez tivesse rompido o relacionamento de 11 anos e ainda faltava coragem para livrar-se da aliança. 

Fiz mil suposições e fui embora. Sem dar "oi" nem "tchau", tampouco. Guardaria a imagem do homem disponível, apaixonado, colecionador de discos e criador de gatos. Seria meu, pra sempre. - Como sou boba, pensei. E dormi aos 25 com a suspeita de que, amorosamente falando, continuava a ter 15. 

3 comentários:

  1. Que é isso menina, que jeito docemente verdadeiro de falar das coisas!!
    Adorei do início ao fim!!!!!!!!!!!!!!!!!

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  2. Que viagem ein? Só quem nunca viajou poderá nos julgar. Belo texto, como sempre. beijos

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